Este ano, a nossa Biblioteca assinala o "Dia Mundial do Livro" com a leitura do conto "O Largo" de Manuel da Fonseca.
“Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila (...)
As grandes faias ainda marginam o Largo como antigamente e, à sua sombra, João Gadunha ainda teima em continuar a tradição. Mas nada é já como era. Todos o troçam e se afastam.
João Gadunha, o bêbado, fala de Lisboa, onde nunca foi. Tudo nele, os gestos e o modo solene de falar, é uma imitação mal pronta dos homens que ouviu quando novo.
Grande cidade, Lisboa! diz ele. Aquilo é gente e mais gente, ruas cheias de pessoal, como numa feira!
Gadunha supõe que em Lisboa ainda há largos e homens como ele conheceu, ali, naquele Largo marginado pelas velhas faias. A sua voz ressoa, animada:
Querem vocês saber? Uma tarde, estava eu no Largo do Rossio...
No Largo"do Rossio?
Sim, rapaz! afirma Gadunha erguendo a cabeça, cheio de importância. Estava eu no Largo do Rossio a ver o movimento. Vá de passar o pessoal para baixo, famílias para cima, um mundo de gente, e eu a ver. Nisto, dou com um tipo a olhar-me de esguelha. Cá está um larápio, pensei eu. Ora se era!... Veio-se chegando, assim como quem não quer a coisa, e meteu-me a mão por baixo da jaqueta. Mas eu já estava à espera!... Salto para o lado e, zás, atiro-lhe uma punhada nos queixos: o tipo foi de gangão, bateu com a cabeça num eucalipto e caiu sem sentidos!
Uma gargalhada acolhe as últimas palavras do Gadunha.
Um eucalipto?
Apenas por um pormenor, estragou uma tão bela história. Fosse antigamente, todos ouviriam calados. Agora, sabem tudo e riem-se. Mas Gadunha teima. Diz que sim, que já esteve no Largo do Rossio, lá em Lisboa.
Vocês já viram um largo sem eucaliptos, ou faias, ou outra árvore qualquer? pergunta ele, desnorteado.
Todos se afastam, rindo." (in O Fogo e as Cinzas, Editorial Caminho)
Conto integral:
MANUEL da FONSECA (1911-1993)
A 15 de Outubro de 1911, nasceu o escritor neo-realista português Manuel da Fonseca. Natural de Santiago do Cacém, descreveu a vida dura dos alentejanos em obras como Planície (1941), Cerromaior (1943) e Seara de Vento (1958).
Foi um dos principais autores do Neo – Realismo português. Radicou-se em Lisboa, desde a época dos estudos secundários, tendo frequentado, por algum tempo, a Escola de Belas – Artes.
Destacou-se como poeta, contista e romancista. Publicou Rosa dos Ventos ( poesia, 1940), Planície ( poesia, 1941, na colecção Novo Cancioneiro, de Coimbra), Aldeia Nova (contos, 1942), Cerro – Maior (romance, 1943), O Fogo e as Cinzas(contos, 1951), Seara de Vento (romance, 1958), Poemas Completos (1958), Um Anjo no Trapézio (contos,1968), Templo de Solidão (contos, 1973), além de um volume de crónicas ( Crónicas Algarvias, 1986) e de uma Antologia de Fialho d´Almeida(1984). Reelaborou alguns de seus textos mais de uma vez, dando-lhes forma definitiva para a Obra Completa.
Exceptuando-se os dois últimos livros e contos, de ambiência lisboeta, trata-se de uma obra profundamente marcada pelo espaço físico e humano do Alentejo (…)
Em íntima relação com sua produção literária, Manuel da Fonseca desenvolveu uma intensa militância social, política e cultural, tendo chegado a ser preso em 1965, por ter integrado o júri que premiou Luanda, de José Luandino Vieira (…)
In: Biblos - Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua portuguesa – 1995
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