Em grande medida a figura lendária de Bocage trai a sua memória. As fábulas e anedotas que dele se contam deixam de fora o génio dos seus versos, lembram o boémio inveterado que ele certamente foi, mas esquecem a sensibilidade feroz que embaraçou os poderosos e que fez mais deste país.
Se a lenda o imortalizou não é menos certo que dele fez o que quis, e tantos escritores de pouco talento se valeram do seu prestígio e algum lucro tiraram, atribuindo-lhe ou fazendo dele o protagonista de todo um anedotário popular poucas vezes inspirado e tantas grosseiro. As gerações sucediam-se e a biografia de Bocage foi ficando soterrada por fábulas de um género soez, por historietas sem graça e facécias de almanaque barato. Mas se «em torno do seu nome chegou a formar-se uma atmosfera de depravação e de escândalo», levando a que os versos bocagianos a dada altura fossem sinónimo de uma «literatura de sal grosso e bafio nauseante, florilégio de lama», como recordou Carlos Jaca num excelente e longo artigo publicado em sucessivas edições do Diário do Minho, em 2005, talvez a tudo isso tenha sobrevivido o talento que o fazia destacar-se e um gosto pela transgressão. E talvez o exagero na representação do poeta revele uma homenagem do povo, que o puxou para si, o reclamou construindo à sua imagem um herói e um porta-voz, alguém que exprimia um inconformismo, um desejo de liberdade resvalando na libertinagem, e o desafio a uma ordem e moral sempre repressivas.
Para ler mais: https://sol.sapo.pt/noticia/510577/Bocage-Sobreviver-a-Lenda
Fonte: semanário "Sol"
Conteúdo relacionado:
- Uma história do Bocage (Ensina RTP)
- "Glosando o mote: morte, juízo, inferno, paraíso", de Bocage (Ensina RTP)
- "Rimas", de Bocage (Ensina RTP)
- "Rimas": a poesia transgressora de Bocage (Ensina RTP)
- Redescobrir Bocage para além do mito (Observador)
- "Glosando o mote: morte, juízo, inferno, paraíso", de Bocage (Ensina RTP - Miguel Guilherme, declama...)
- Manuel Maria Barbosa du Bocage na Wikipédia