domingo, 5 de março de 2017

Bocage: sobreviver à lenda


Em grande medida a figura lendária de Bocage trai a sua memória. As fábulas e anedotas que dele se contam deixam de fora o génio dos seus versos, lembram o boémio inveterado que ele certamente foi, mas esquecem a sensibilidade feroz que embaraçou os poderosos e que fez mais deste país.


Se a lenda o imortalizou não é menos certo que dele fez o que quis, e tantos escritores de pouco talento se valeram do seu prestígio e algum lucro tiraram, atribuindo-lhe ou fazendo dele o protagonista de todo um anedotário popular poucas vezes inspirado e tantas grosseiro. As gerações sucediam-se e a biografia de Bocage foi ficando soterrada por fábulas de um género soez, por historietas sem graça e facécias de almanaque barato. Mas se «em torno do seu nome chegou a formar-se uma atmosfera de depravação e de escândalo», levando a que os versos bocagianos a dada altura fossem sinónimo de uma «literatura de sal grosso e bafio nauseante, florilégio de lama», como recordou Carlos Jaca num excelente e longo artigo publicado em sucessivas edições do  Diário do Minho,  em 2005, talvez a tudo isso tenha sobrevivido o talento que o fazia destacar-se e um gosto pela transgressão. E talvez o exagero na representação do poeta revele uma homenagem do povo, que o puxou para si, o reclamou construindo à sua imagem um herói e um porta-voz, alguém que exprimia um inconformismo, um desejo de liberdade resvalando na libertinagem, e o desafio a uma ordem e moral sempre repressivas.



                                                                                                                             Fonte: semanário "Sol"


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