por Isabel Lucas | Ler no Público | foto: Luis Davilla/Getty Images
Vinte anos de Nobel e um inédito para celebrar. Último Caderno, a publicar esta segunda-feira, é a derradeira obra de José Saramago. “É uma carta que nos deixou”, diz Pilar del Río. Com ela vamos lendo esse diário de 1998, tentando entender ideias, preencher faltas, contradições e um legado que ela assumiu, como missão, preservar como muito mais do que memória histórica.
Se os dias do Nobel tivessem uma imagem íntima seria a de um homem adormecido numa poltrona, os pés cruzados em cima da mesa, e de uma mulher deitada no sofá ao lado, tapada por jornais. Ela dorme e apoia o rosto na mão esquerda que tem junto ao queixo. Ele, sentado, como se estivesse a pensar, mão direita semiaberta, o indicador na testa e o polegar junto à orelha. Parece numa pausa de conversa. E é, mas inusitada. A fotografia a preto e branco, está pendurada numa das paredes da casa de Lisboa de José Saramago e Pilar del Río. Tem a data de 14 de Novembro de 1998 e foi tirada noutra sala, de outra casa de José e Pilar, em Lanzarote por um jornalista que os entrevistava. “Tínhamos chegado do primeiro compromisso público entre o anúncio do Nobel e a cerimónia em Estocolmo. Tínhamos regressado de Paris. Ele tinha ido à Sorbonne e à Fundação Gulbenkian [delegação em França]. Estava connosco um jornalista a fazer uma reportagem para um suplemento cultural de um jornal de Espanha. Estávamos a falar com ele e, primeiro, foi o José. Pôs os pés na mesa e adormeceu. Eu, que estava a ler um jornal, adormeci a seguir. A fotografia somos os dois a dormir, cada um no seu sítio; eu toda tapada com jornais, com uma cadela aos pés. Sim, essa é uma imagem desses dias”, afirma Pilar del Río enquanto olha a fotografia com um sorriso.
Não se falou disso, mas há uma breve nota sobre esse dia no diário recém-descoberto de José Saramago. Assim: “Lanzarote. Entrevista Anders Lange, Morgenavien.”
Passaram 20 anos. Está uma manhã de sol num bairro tranquilo do centro de Lisboa. O mesmo sol que ilumina, luz filtrada pela janela, a fotografia e o rosto de Pilar quando a aponta. É sábado e quase não há ruídos junto à casa azul baptizada com o nome de uma das personagens mais emblemáticas da obra de Saramago. A casa chama-se Blimunda, a protagonista visionária de Memorial do Convento. Nela vive agora Pilar del Río, a ex-jornalista, mulher do escritor durante 22 anos, tradutora de parte da sua obra para castelhano, presidente da Fundação José Saramago. Perto do dedo de Pilar há uma folha emoldurada. Chama a atenção para ela. É branca e nela destaca-se uma impressa expressão Uff; terminara o Ensaio sobre a Cegueira. A luz ainda não comeu a tinta. Há mais fotografias. Muitas. Em quase nenhuma o escritor aparece a rir. “Ele não gostava das fotografias em que aparecia a sorrir”, conta Pilar que confirma, no entanto, um grande sentido de humor. “Ele tinha muita ironia e dizia muitas vezes ‘tenho de evitar cair no sarcasmo’. Ele exilava-se para não cair no sarcasmo. A ironia e a auto-ironia, tudo bem. O humor, sim. O sarcasmo, não. Considerava-o desrespeitoso, diminui o outro. Mas tinha de se vigiar. Era muito autovigilante nisso, sobretudo quando escrevia.”
Há ainda a imagem da caligrafia, sublinhados, rasuras. Ocorre uma frase da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles de que Saramago gostava: “A nossa memória (...) manipula as recordações, organiza-as, compõe-as, recompõe-as, e é, dessa maneira, em dois instantes seguidos, a mesma memória e a memória que passou a ser.”
Aquele é um lugar de justaposição de memórias. Estamos no presente de uma conversa iluminada por memórias do escritor e também pelas memórias de quem tem a função de manter vivo o seu legado. Essa é a condição para se estar ali, naquela casa, vinte anos depois do Nobel da Literatura, curiosamente num ano em que não é atribuído o Nobel da Literatura. “Saramago e eu tínhamos um projecto e esse projecto implicava-o a ele e implicava-me, com as diferenças óbvias. Dentro do projecto Saramago está o pensar, o reflectir, a literatura, e estão os direitos e os deveres humanos. Eu estou aqui [em Portugal] como integrante do projecto Saramago. Não sou a única. A Fundação é uma parte do projecto. E o projecto Saramago — chamamo-lo assim depois da morte de Saramago, porque ele não o teria permitido — é um projecto de intervenção cultural, social e política de reflexão. Sinto-me muito cómoda porque não vou falar jamais, jamais, como viúva! Quem não me vir como parte desse projecto que não se relacione comigo, porque como família não falo. Essa é a minha vida íntima e privada e dela não digo nada.”
Saramago morreu em 2010, doze anos após o Nobel, 87 depois de nascer na aldeia de Azinhaga, concelho da Golegã, junto ao rio Tejo. “Foi este o mundo em que, criança, e depois adolescente, me iniciei na mais humana e formativa de todas as artes: a da contemplação”, escreve em 28 de Abril. No célebre discurso em Estocolmo, quando recebeu o Nobel, lembraria os avós, Jerónimo e Eulália, em como os ajudou a pastar porcos, como então a vida parecia muito longe de o levar um dia a escritor. Menos ainda a um escritor com o mais cobiçado dos prémios. Os sonhos não chegavam aí. Antes, foi torneiro mecânico, jornalista, e aos 53 anos decidiu apostar tudo na escrita. Traduzia e escrevia. O primeiro romance, Terra de Pecado, foi publicado em 1947. Só trinta anos depois, em 1977, surge o segundo, Manual de Pintura e Caligrafia; em 1980, Levantado do Chão e, em 1982, Memorial do Convento. Tinha 60 anos. Era o princípio.
As marcas de muita dessa escrita, desse percurso, estão pela casa. Na secretária de Pilar, há um exemplar de Anna Karenina numa tradução de Saramago a partir do francês, uma edição de 1959 dos Estúdios Cor. As memórias intrometem-se.
(Continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário