terça-feira, 9 de outubro de 2018

A última carta de Saramago, 20 anos depois do nobel (2)





“Vinte anos depois é o momento adequado para certas reflexões e confidências”, escreveu no prefácio a Último Caderno de Lanzarote, o diário relativo ao ano de 1998, encontrado por acaso quando ela procurava um texto no computador que José Saramago usou nos últimos anos da sua escrita. O livro chegou a ser anunciado pelo escritor em 2001, na edição espanhola do 2.º volume de Cadernos de Lanzarote. Assim: “E, se o Sexto Caderno não chegou a ver a luz do dia e ficou preso no disco rígido do computador, foi apenas porque, enredado de súbito em mil obrigações e compromissos, todos urgentes, todos imperativos, todos inadiáveis, perdi o ânimo e também a paciência para rever e corrigir as duzentas páginas que tinham acolhido as ideias, os factos e também as emoções com que o ano de 1998 me beneficiou e, uma ou outra vez, me agrediu...” Nos planos dele, haveria uma edição em Portugal. Em Espanha, se veria. Mas o tal VI Caderno nunca apareceu e deu-se como perdido. Até Fevereiro deste ano. 
“Devemos esta descoberta a Fernando Gómez Aguilera”, conta Pilar del Río numa conversa interrompida por muitas memórias, espécie de boas intrusas que tanto a levam a gargalhadas como lhe provocam comoção. Aguilera é poeta e ensaísta, director da Fundação César Manrique, em Lanzarote, e curador da Fundação Saramago. Convidado pela Editorial Alfaguara para organizar um volume com as conferências e discursos de Saramago, pediu textos específicos a Pilar. Por exemplo: “Havia várias versões de uma conferência de José e gerou-se uma discussão porque há o mesmo texto pronunciado em diferentes sítios com certas alterações, e então, era preciso ver qual era a última — a última versão de um discurso é sempre considerada a ‘ortodoxa’ por Carlos Reis [professor da Universidade de Coimbra e um dos especialistas da obra de Saramago]. Entrei no computador, havia uma pasta com o título Cadernos e dou com o VI Caderno. Foi assim. Tão banal quanto isto”, diz, tentando reconstituir o que sentiu naquele momento. “Fiquei sem reacção. Não é que não se possa contar o que senti, pode-se contar tudo, mas é preciso encontrar muitos qualificativos para dizer que fiquei perplexa, sem ar, emocionada. Vi as notas, e ali estava o dia 1, depois o dia 2, o dia 3... Ali estava ele, no seu lugar de trabalho, no seu computador. Eram tantas horas da madrugada e eu ali estou, num outro dia a entrar naquele dia de há vinte anos, a encontrar tudo aquilo...

(Continua)

Referência: Lucas, I. (2018). A última carta de SaramagoPÚBLICO. Retrieved 7 October 2018, from https://www.publico.pt/2018/10/07/culturaipsilon/noticia/quando-o-tempo-comecou-a-contar-faz-20-anos-1846366

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