quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Recordação do 2ª Chá das Letras de 23 de outubro de 2018





Abraço de gratidão, prof. Fernanda Manuela Antunes, pela celebração de um "Aniversário" inesperado e especialíssimo.




"Quando os dias chuvosos se aproximam, nada mais prazenteiro do que ler um poema de um Poeta (com maiúscula!), acompanhado por um chá bem quentinho e em boa companhia! 



O poema “Aniversário”, de Álvaro de Campos, leva-me sempre ao meu tempo da infância, “aos serões de meia província”. Através dele, quase consigo fazer uma viagem real no tempo: os meus familiares ancestrais, o cheiro a pão doce, a amêndoas de licor, a soalho encerado e a maresia da praia de Espinho. 



Foi um prazer partilhar convosco essa lembrança, através dos versos inigualáveis deste heterónimo de Pessoa. 



Bem hajam. "



Fernanda Manuela (profª de Português da ESFB)








                                                                              

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!
(Nem o eco! )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

Professora
Fernanda Manuela Antunes


         Alegria no trabalho, "para além dos olhos..."

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