Muitos parabéns, António Tavares, pela singular beleza do teu texto!Forte e grato abraço da equipa da BE
"Que cada um de nós possa alcançar o topo do seu Monte Athos e descobrir que outros montes mais altos se perfilam no horizonte."
António Tavares
Deliciem-se, pois...
Ao ler esta obra cada um de nós poderá rever-se nela. O seu percurso exterior é, no fundo, uma caminhada espiritual, interior, mas com reflexos profundos e determinantes na nossa vida comum de todos os dias. Não é uma abstração, não é simbólica. É a nossa realidade. Por vezes dura, outras vezes suave, mas, sempre a realidade. Neste livro vemo-nos confrontados com os anjos e os demónios da nossa existência. Somos, algumas vezes, conduzidos ao confronto puro e duro com as maiores dificuldades ou elevados à beatitude da contemplação de um Mar Egeu límpido e cristalino.
Nele revemos os companheiros de viagem. Nele reconhecemos os falsos amigos que nos cercam. Mas também os verdadeiros, os que sempre nos apoiam. Nele revisitamos os caminhos que percorremos, para descobrirmos que chegámos a um beco sem saída. Mas a grande lição a tirar daqui é a de que vale a pena voltar para trás para encontrar um novo percurso. O que se perde em tempo, ganha-se em experiência. Nunca nada se perde em absoluto. As encruzilhadas, as opções que é necessário tomar. Algumas delas erradas. Outras acertadas. Todas confluindo e conspirando para a nossa aprendizagem, para a nossa evolução enquanto seres humanos empenhados, comprometidos, com um percurso espiritual sempre norteado pelos mais elevados valores humanos.
Leitura integral
MONTE ATHOS[1]
Num interessante estudo chamado
“Narrativa e Topografia da Peregrinação ao Monte Athos”, Christos Kakalis,
professor na Universidade de Edimburgo, tem este curioso comentário:
“Etimologicamente, topografia relaciona-se com a inscrição (graphein)
de lugares (topos) e está tradicionalmente ligada à “ciência ou prática de
descrever um determinado lugar, cidade, circunscrição ou pedaço de terra; a
descrição precisa e detalhada ou delimitação de um local”. Mas, se um local ('topos')
é aquilo que corporiza a interação entre o indivíduo e o seu meio, então este
estudo está fundamentado numa definição mais vasta de topografia que inclui uma
abordagem experimental desta interação. Neste quadro fenoménico, “A Topografia
da Peregrinação ao Monte Athos” concretiza um mapeamento da paisagem através da
combinação dos movimentos rituais nos mosteiros e do caminho que se realiza ao
longo de uma rede de percursos pedestres. O papel da narrativa, num mapeamento
mais genuíno da topografia de Athos, está baseado na capacidade para sintetizar
uma série de eventos diferentes (mesmo aparentemente não relacionados) num todo
inteligível, através duma dinâmica de enredo. O termo enredo refere-se, aqui,
ao arranjo e configuração de eventos heterogéneos baseados na relação de causa
e efeito que entre eles existe. Neste sentido, as narrativas pessoais e
coletivas contribuem para um processo dinâmico de uma topografia integrada, que
não pode ser reduzida a uma mera abordagem geográfica do assunto.”
Conheci o Hélder Palhas, há alguns
anos, no contexto do nosso interesse comum pelo estudo comparado das grandes
correntes de pensamento religiosas e filosóficas. Sempre admirei nele o
entusiasmo que coloca nas coisas que faz mas, acima de tudo, a sua vontade em
erguer-se, sempre mais alto, para alcançar uma visão mais abrangente e
esclarecida das coisas.
Até ao momento não lhe
conhecíamos produção literária nem tínhamos, ainda, descortinado as suas
aptidões para a escrita. Provavelmente, ele também não. Contudo, como muitos
irão descobrir, através do livro que agora é dado à estampa, o seu sentido
narrativo e a sua qualidade literária são evidentes.
Este jeito para a escrita
ramifica-se em termos familiares com sucesso. O seu irmão Jorge publicou,
recentemente, um interessantíssimo livro intitulado “Portugal: que Futuro?”,
onde procura correlacionar a realidade nacional, presente, com o nosso devir
coletivo, enquanto nação, à luz de uma abordagem de raiz espiritual. Mas o
filhote Martim parece querer continuar este jeito para “contar uma história”
sendo já dono de prémios escolares que devem deixar o pai Hélder e a mãe
Cláudia perfeitamente babados.
Filho de peixe sabe nadar. Mas
pai de peixe também.
Por isso o Hélder se lançou –
seguindo as pisadas do Martim? – nesta aventura de colocar por escrito a sua
experiência pessoal durante a visita que levou a cabo a esse monte sagrado, a
essa montanha conhecida como Monte Athos.
Há cerca de um ano, por motivos
profissionais, o Hélder radicou-se na Bulgária, em Sofia. Aí tem tido tempo e
oportunidade para tomar contacto com as várias tradições religiosas e filosóficas
do mediterrâneo oriental onde a igreja ortodoxa possui, como todos sabem, uma
implantação determinante.
E decide, pouco depois,
empreender, logo que lhe fosse possível, uma viagem a esse lugar remoto, mágico
e pleno das mais variadas referências – o Monte Athos - uma viagem que se lhe
colocou, talvez, como mais um desafio a vencer. Estamos convictos de que essa
viagem o conduziu muito mais longe do que aquilo que ele próprio poderia
imaginar.
Mas façamos um parêntesis para
observarmos mais de perto a realidade deste local sagrado.
O Monte Athos – também conhecido
como Monte Santo - fica localizado numa península a norte da Grécia, na região
da Macedónia, albergando 20 mosteiros ortodoxos. Embora se constitua como
estado autónomo encontra-se sob soberania grega. A sua população é
exclusivamente masculina – maiores de 18 anos – atingindo, presentemente, cerca
de 1400 habitantes.
Os escritos gregos da antiguidade
– nomeadamente os de Estrabão - referem a existência de várias povoações na
península, algumas de relativa importância. Contudo, ela surge deserta para os
primeiros monges que a habitaram não se tendo encontrado, até hoje, vestígios
concludentes e datáveis de edificações da época.
Na antiguidade clássica a
península era conhecida como Akte. Akte era uma das “Horas”, uma das doze
deusas gregas que presidiam ao ordenamento do tempo diurno, tutelando os seus
ciclos naturais. As Horas eram filhas do deus Sol, Helios e Akte governava o
segundo ciclo da jornada de trabalho, que ocorria durante a tarde. Era uma
deusa dispensadora da Vida e do Alimento. Não só aquele que nutre os corpos
mas, também, o alimento que sustenta os espíritos. Acte significa, em grego, “milho”.
As primeiras comunidades
monásticas adotaram a designação de “skete” ou “lavra”. Skete parece ser uma palavra de origem árabe usada para designar as
primitivas congregações de reclusão mística sediadas no deserto líbio. Já o
termo lavra significava,
originalmente, “comunidade monástica”. O principal mosteiro de Athos é chamado
de “Megisti Lávra” ou “Grande Lavra”. Existem 12 sketes oficiais no Monte Athos.
O nosso objetivo, neste momento,
não será tanto o de relatar as vicissitudes políticas e sociais da comunidade
do Monte Athos, ao longo dos tempos, mas, antes, o de tentar perceber o
contexto espiritual em que ela se fundamenta e, mais importante, qual o
fascínio que exerce sobre os que a visitam.
Segundo a tradição ortodoxa o
Mosteiro da Grande Lavra parece ter sido fundado no século X por Sto. Atanásio.
Iconograficamente Sto. Atanásio é, muitas vezes, representado junto a Maria
estando esta consignada na sua qualidade de Theotokos,
isto é, como “Portadora de Deus”. Uma qualificação que ganha raízes e se firma na
Idade Média com os primeiros alvores do Culto Mariano, na Igreja Católica,
adquirindo especial destaque o papel que lhe é atribuído na fundação da Igreja
de Santa Maria Maggiore, em Roma. A declaração do Concílio de Éfeso, em 431 da
nossa era, que declara Maria como Theotokos,
acaba por ser fervorosamente adotada pelos Cristãos Ortodoxos.
Na verdade Maria foi a portadora
de Deus para os Cristãos, a portadora de Jesus, o Cristo. Contudo outros
portadores do Cristo são relevantes neste contexto. Segundo algumas fontes os
monges de Athos são extremamente relutantes em mostrar a estranhos algumas
relíquias e ícones, muitos deles controversos. Uma das relíquias ciosamente
guardadas seria um dente do cão de S. Cristóvão. Outros referem que uma das
imagens deste santo teria sido pintada sobre uma primitiva imagem do mesmo
santo cinocéfalo. Muitas fontes referem que esta figura tutelar da Igreja - que
transporta o menino Deus às costas de uma margem para outra do rio tumultuoso -
teria tido uma primitiva representação com uma cabeça de cão. Walter Loeschke
refere, num seu estudo de 1965, ter encontrado 70 exemplos de um S. Cristóvão
cinocéfalo desde a Rússia à Irlanda.
Vem a talhe de foice recordar que
também um outro Cristóvão, Colombo, atravessou o Atlântico tempestuoso sob a
proteção dos Reis de Castela (mas com o beneplácito dos Reis de Portugal)
assinando as suas missivas com a misteriosa sigla XPFERENS, que significa,
precisamente, “o portador do Cristo”. Mas esta é uma outra história… Ou talvez
não…
O que é certo é que o Monte Athos
sempre beneficiou de um estatuto particular e as vicissitudes sofridas ao longo
dos tempos haveriam de reforçar a sua identidade enquanto foco de religiosidade.
No entanto, existem registos da permanência de monges na península muito
anteriores ao século X. Como é sabido as mulheres – e também os animais fêmea –
estão banidos do território, embora existam naturais exceções. Aliás, em momentos
conturbados, a comunidade deu asilo e assistência humanitária a muitas pessoas,
sem distinção de género, como aconteceu durante a guerra civil grega da
independência, em 1821.
Mas, ao longo dos tempos, o apelo
misterioso do Monte Athos tem sido irresistível, até para algumas mulheres, as
quais, desafiando a ordem patriarcal estabelecida, ousaram subverter, com
sucesso, a proibição secular sujeitando-se ao anátema espiritual. Em 1920, a
escritora Francesa Maryse Choisy, entra no Monte Athos disfarçada de
marinheiro, tendo contado, posteriormente, a sua aventura no livro “Un Mois
chez les hommes”. E, como ela, outras mulheres conseguiram aceder a esse mundo
proibido.
Esta ausência de elementos
femininos é justificada, na tradição ortodoxa, através do seguinte relato. Um dia
a Virgem navegava, na companhia de João, Evangelista, em direção a Chipre, para
visitar Lázaro. Uma tempestade fez desviar o curso do navio para a península de
Athos. A beleza natural do local onde aportou deixou a Virgem maravilhada.
Pediu, então, a Deus que a Ilha lhe fosse consagrada como seu jardim. A partir
daí a sacralização desse espaço afasta, naturalmente, todas as mulheres da sua
fruição. Nenhuma outra poderia doravante profanar um espaço consagrado à
própria Virgem, à Mulher Divina, por excelência.
Desta forma o Monte Athos foi ganhando,
ao longo da história, um estatuto muito particular no conspecto das tradições
religiosas e muito especialmente no mundo ortodoxo, sendo hoje reconhecido como
património mundial pela UNESCO. Talvez tenha sido todo este contexto que
envolveu o nosso Hélder e o conduziu a essa aventura de que nos dá conta no seu
livro.
Só ele poderá confidenciar-nos os
motivos que o levaram a essa viagem, mas pensamos que não estaremos longe da
verdade se apontarmos, entre outros, o seu interesse pelas coisas espirituais. O
termo “interesse” talvez seja enganador. Não será bem um “interesse” no sentido
menor e egoísta do termo e, de modo nenhum, uma moda efémera. Na verdade é uma
filosofia de vida, algo que faz parte das vivências mais profundas de muitos de
nós e nos conduz, no mundo conturbado em que vivemos, rumo à nossa finalidade
essencial como seres humanos, aqui e agora.
Através das redes sociais o
Hélder foi dando conta dos registos escritos desse percurso a um restrito grupo
de amigos que o incentivaram nesse seu propósito de nos legar um diário de
viagem. As circunstâncias felizes haveriam de juntar a vontade da “Chiado
Editora” para a produção desta obra: “Athos - Viagem dentro de um Peregrino”
que consubstancia o conjunto de vivências e de reflexões pessoais do Hélder
durante a sua estadia no Monte Athos.
Quando o Hélder me contatou dando
conta da oportunidade surgida de publicar esse relato em livro e convidando-me
para o apresentar senti-me, sinceramente, um privilegiado e desejo, desde já,
agradecer-lhe o convite feito que me honra muito e no qual procurei colocar
todo o meu empenho, desde a primeira hora.
Nas apresentações de obras
literárias quem apresenta incorre, algumas vezes, naquilo que para mim é um
lapso: citar e apresentar partes do livro. Todos concordarão que bom é mesmo
ler o livro. No entanto desejaria referir algo que, para mim, é essencial.
Fiquem descansados, não vou contar partes do livro…
Ao ler esta obra cada um de nós
poderá rever-se nela. O seu percurso exterior é, no fundo, uma caminhada espiritual,
interior, mas com reflexos profundos e determinantes na nossa vida comum de
todos os dias. Não é uma abstração, não é simbólica. É a nossa realidade. Por
vezes dura, outras vezes suave, mas, sempre a realidade. Neste livro vemo-nos
confrontados com os anjos e os demónios da nossa existência. Somos, algumas
vezes, conduzidos ao confronto puro e duro com as maiores dificuldades ou
elevados à beatitude da contemplação de um Mar Egeu límpido e cristalino.
Nele revemos os companheiros de
viagem. Nele reconhecemos os falsos amigos que nos cercam. Mas também os
verdadeiros, os que sempre nos apoiam. Nele revisitamos os caminhos que percorremos,
para descobrirmos que chegámos a um beco sem saída. Mas a grande lição a tirar
daqui é a de que vale a pena voltar para trás para encontrar um novo percurso.
O que se perde em tempo, ganha-se em experiência. Nunca nada se perde em
absoluto. As encruzilhadas, as opções que é necessário tomar. Algumas delas
erradas. Outras acertadas. Todas confluindo e conspirando para a nossa
aprendizagem, para a nossa evolução enquanto seres humanos empenhados,
comprometidos, com um percurso espiritual sempre norteado pelos mais elevados
valores humanos.
Uma parte do livro tocou-me especialmente.
Aquela onde o Hélder refere o seu percurso com os pés inchados, cheios de
bolhas. Sim, Kakalis tem razão. Uma peregrinação não é apenas uma caminhada
exterior num ambiente mais ou menos propício. Não é apenas uma viagem
geográfica. É, acima de tudo, um percurso interior que acaba por ter
ressonâncias e conotações com a realidade exterior. Daí que a experiência
individual numa peregrinação seja irrepetível. Cada um vive-a a seu modo de
acordo com o seu universo particular. Contudo aquilo que cada um de nós aprende
nessa viagem exterior e interior é o mesmo.
A mesma verdade eterna e incontingente. É essa verdade que nos une a
todos: homens e mulheres, ricos e pobres, cristãos, budistas, muçulmanos…
Que cada um de nós possa alcançar
o topo do seu Monte Athos e descobrir que outros montes mais altos se perfilam
no horizonte.
Muito Obrigado
António Tavares
[1] Prefácio
ao livro “Athos - viagem dentro de um peregrino” de Hélder Palhas, Chiado
Editora, Lisboa 2012.
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