quinta-feira, 1 de abril de 2021

Alcancemos, na nossa "viagem", o topo do Monte Athos, conduzidos pelas palavras, sublimemente, sentidas pelo nosso prezado colega, Professor António Tavares.

Muitos parabéns, António Tavares, pela singular beleza do teu texto!

Forte e grato abraço da equipa da BE


"Que cada um de nós possa alcançar o topo do seu Monte Athos e descobrir que outros montes mais altos se perfilam no horizonte."  

                                                                          António Tavares



Deliciem-se, pois...


Ao ler esta obra cada um de nós poderá rever-se nela. O seu percurso exterior é, no fundo, uma caminhada espiritual, interior, mas com reflexos profundos e determinantes na nossa vida comum de todos os dias. Não é uma abstração, não é simbólica. É a nossa realidade. Por vezes dura, outras vezes suave, mas, sempre a realidade. Neste livro vemo-nos confrontados com os anjos e os demónios da nossa existência. Somos, algumas vezes, conduzidos ao confronto puro e duro com as maiores dificuldades ou elevados à beatitude da contemplação de um Mar Egeu límpido e cristalino.

Nele revemos os companheiros de viagem. Nele reconhecemos os falsos amigos que nos cercam. Mas também os verdadeiros, os que sempre nos apoiam. Nele revisitamos os caminhos que percorremos, para descobrirmos que chegámos a um beco sem saída. Mas a grande lição a tirar daqui é a de que vale a pena voltar para trás para encontrar um novo percurso. O que se perde em tempo, ganha-se em experiência. Nunca nada se perde em absoluto. As encruzilhadas, as opções que é necessário tomar. Algumas delas erradas. Outras acertadas. Todas confluindo e conspirando para a nossa aprendizagem, para a nossa evolução enquanto seres humanos empenhados, comprometidos, com um percurso espiritual sempre norteado pelos mais elevados valores humanos.


Leitura integral

MONTE ATHOS[1]

Num interessante estudo chamado “Narrativa e Topografia da Peregrinação ao Monte Athos”, Christos Kakalis, professor na Universidade de Edimburgo, tem este curioso comentário: 

“Etimologicamente, topografia relaciona-se com a inscrição (graphein) de lugares (topos) e está tradicionalmente ligada à “ciência ou prática de descrever um determinado lugar, cidade, circunscrição ou pedaço de terra; a descrição precisa e detalhada ou delimitação de um local”. Mas, se um local ('topos') é aquilo que corporiza a interação entre o indivíduo e o seu meio, então este estudo está fundamentado numa definição mais vasta de topografia que inclui uma abordagem experimental desta interação. Neste quadro fenoménico, “A Topografia da Peregrinação ao Monte Athos” concretiza um mapeamento da paisagem através da combinação dos movimentos rituais nos mosteiros e do caminho que se realiza ao longo de uma rede de percursos pedestres. O papel da narrativa, num mapeamento mais genuíno da topografia de Athos, está baseado na capacidade para sintetizar uma série de eventos diferentes (mesmo aparentemente não relacionados) num todo inteligível, através duma dinâmica de enredo. O termo enredo refere-se, aqui, ao arranjo e configuração de eventos heterogéneos baseados na relação de causa e efeito que entre eles existe. Neste sentido, as narrativas pessoais e coletivas contribuem para um processo dinâmico de uma topografia integrada, que não pode ser reduzida a uma mera abordagem geográfica do assunto.”

Conheci o Hélder Palhas, há alguns anos, no contexto do nosso interesse comum pelo estudo comparado das grandes correntes de pensamento religiosas e filosóficas. Sempre admirei nele o entusiasmo que coloca nas coisas que faz mas, acima de tudo, a sua vontade em erguer-se, sempre mais alto, para alcançar uma visão mais abrangente e esclarecida das coisas.

Até ao momento não lhe conhecíamos produção literária nem tínhamos, ainda, descortinado as suas aptidões para a escrita. Provavelmente, ele também não. Contudo, como muitos irão descobrir, através do livro que agora é dado à estampa, o seu sentido narrativo e a sua qualidade literária são evidentes.

Este jeito para a escrita ramifica-se em termos familiares com sucesso. O seu irmão Jorge publicou, recentemente, um interessantíssimo livro intitulado “Portugal: que Futuro?”, onde procura correlacionar a realidade nacional, presente, com o nosso devir coletivo, enquanto nação, à luz de uma abordagem de raiz espiritual. Mas o filhote Martim parece querer continuar este jeito para “contar uma história” sendo já dono de prémios escolares que devem deixar o pai Hélder e a mãe Cláudia perfeitamente babados.

Filho de peixe sabe nadar. Mas pai de peixe também.

Por isso o Hélder se lançou – seguindo as pisadas do Martim? – nesta aventura de colocar por escrito a sua experiência pessoal durante a visita que levou a cabo a esse monte sagrado, a essa montanha conhecida como Monte Athos.

Há cerca de um ano, por motivos profissionais, o Hélder radicou-se na Bulgária, em Sofia. Aí tem tido tempo e oportunidade para tomar contacto com as várias tradições religiosas e filosóficas do mediterrâneo oriental onde a igreja ortodoxa possui, como todos sabem, uma implantação determinante.

E decide, pouco depois, empreender, logo que lhe fosse possível, uma viagem a esse lugar remoto, mágico e pleno das mais variadas referências – o Monte Athos - uma viagem que se lhe colocou, talvez, como mais um desafio a vencer. Estamos convictos de que essa viagem o conduziu muito mais longe do que aquilo que ele próprio poderia imaginar.

Mas façamos um parêntesis para observarmos mais de perto a realidade deste local sagrado.

O Monte Athos – também conhecido como Monte Santo - fica localizado numa península a norte da Grécia, na região da Macedónia, albergando 20 mosteiros ortodoxos. Embora se constitua como estado autónomo encontra-se sob soberania grega. A sua população é exclusivamente masculina – maiores de 18 anos – atingindo, presentemente, cerca de 1400 habitantes.

Os escritos gregos da antiguidade – nomeadamente os de Estrabão - referem a existência de várias povoações na península, algumas de relativa importância. Contudo, ela surge deserta para os primeiros monges que a habitaram não se tendo encontrado, até hoje, vestígios concludentes e datáveis de edificações da época.

Na antiguidade clássica a península era conhecida como Akte. Akte era uma das “Horas”, uma das doze deusas gregas que presidiam ao ordenamento do tempo diurno, tutelando os seus ciclos naturais. As Horas eram filhas do deus Sol, Helios e Akte governava o segundo ciclo da jornada de trabalho, que ocorria durante a tarde. Era uma deusa dispensadora da Vida e do Alimento. Não só aquele que nutre os corpos mas, também, o alimento que sustenta os espíritos. Acte significa, em grego, “milho”.

As primeiras comunidades monásticas adotaram a designação de “skete” ou “lavra”. Skete parece ser uma palavra de origem árabe usada para designar as primitivas congregações de reclusão mística sediadas no deserto líbio. Já o termo lavra significava, originalmente, “comunidade monástica”. O principal mosteiro de Athos é chamado de “Megisti Lávra” ou “Grande Lavra”. Existem 12 sketes oficiais no Monte Athos.

O nosso objetivo, neste momento, não será tanto o de relatar as vicissitudes políticas e sociais da comunidade do Monte Athos, ao longo dos tempos, mas, antes, o de tentar perceber o contexto espiritual em que ela se fundamenta e, mais importante, qual o fascínio que exerce sobre os que a visitam.

Segundo a tradição ortodoxa o Mosteiro da Grande Lavra parece ter sido fundado no século X por Sto. Atanásio. Iconograficamente Sto. Atanásio é, muitas vezes, representado junto a Maria estando esta consignada na sua qualidade de Theotokos, isto é, como “Portadora de Deus”. Uma qualificação que ganha raízes e se firma na Idade Média com os primeiros alvores do Culto Mariano, na Igreja Católica, adquirindo especial destaque o papel que lhe é atribuído na fundação da Igreja de Santa Maria Maggiore, em Roma. A declaração do Concílio de Éfeso, em 431 da nossa era, que declara Maria como Theotokos, acaba por ser fervorosamente adotada pelos Cristãos Ortodoxos.

Na verdade Maria foi a portadora de Deus para os Cristãos, a portadora de Jesus, o Cristo. Contudo outros portadores do Cristo são relevantes neste contexto. Segundo algumas fontes os monges de Athos são extremamente relutantes em mostrar a estranhos algumas relíquias e ícones, muitos deles controversos. Uma das relíquias ciosamente guardadas seria um dente do cão de S. Cristóvão. Outros referem que uma das imagens deste santo teria sido pintada sobre uma primitiva imagem do mesmo santo cinocéfalo. Muitas fontes referem que esta figura tutelar da Igreja - que transporta o menino Deus às costas de uma margem para outra do rio tumultuoso - teria tido uma primitiva representação com uma cabeça de cão. Walter Loeschke refere, num seu estudo de 1965, ter encontrado 70 exemplos de um S. Cristóvão cinocéfalo desde a Rússia à Irlanda.

Vem a talhe de foice recordar que também um outro Cristóvão, Colombo, atravessou o Atlântico tempestuoso sob a proteção dos Reis de Castela (mas com o beneplácito dos Reis de Portugal) assinando as suas missivas com a misteriosa sigla XPFERENS, que significa, precisamente, “o portador do Cristo”. Mas esta é uma outra história… Ou talvez não…

O que é certo é que o Monte Athos sempre beneficiou de um estatuto particular e as vicissitudes sofridas ao longo dos tempos haveriam de reforçar a sua identidade enquanto foco de religiosidade. No entanto, existem registos da permanência de monges na península muito anteriores ao século X. Como é sabido as mulheres – e também os animais fêmea – estão banidos do território, embora existam naturais exceções. Aliás, em momentos conturbados, a comunidade deu asilo e assistência humanitária a muitas pessoas, sem distinção de género, como aconteceu durante a guerra civil grega da independência, em 1821.

Mas, ao longo dos tempos, o apelo misterioso do Monte Athos tem sido irresistível, até para algumas mulheres, as quais, desafiando a ordem patriarcal estabelecida, ousaram subverter, com sucesso, a proibição secular sujeitando-se ao anátema espiritual. Em 1920, a escritora Francesa Maryse Choisy, entra no Monte Athos disfarçada de marinheiro, tendo contado, posteriormente, a sua aventura no livro “Un Mois chez les hommes”. E, como ela, outras mulheres conseguiram aceder a esse mundo proibido.

Esta ausência de elementos femininos é justificada, na tradição ortodoxa, através do seguinte relato. Um dia a Virgem navegava, na companhia de João, Evangelista, em direção a Chipre, para visitar Lázaro. Uma tempestade fez desviar o curso do navio para a península de Athos. A beleza natural do local onde aportou deixou a Virgem maravilhada. Pediu, então, a Deus que a Ilha lhe fosse consagrada como seu jardim. A partir daí a sacralização desse espaço afasta, naturalmente, todas as mulheres da sua fruição. Nenhuma outra poderia doravante profanar um espaço consagrado à própria Virgem, à Mulher Divina, por excelência.

Desta forma o Monte Athos foi ganhando, ao longo da história, um estatuto muito particular no conspecto das tradições religiosas e muito especialmente no mundo ortodoxo, sendo hoje reconhecido como património mundial pela UNESCO. Talvez tenha sido todo este contexto que envolveu o nosso Hélder e o conduziu a essa aventura de que nos dá conta no seu livro.

Só ele poderá confidenciar-nos os motivos que o levaram a essa viagem, mas pensamos que não estaremos longe da verdade se apontarmos, entre outros, o seu interesse pelas coisas espirituais. O termo “interesse” talvez seja enganador. Não será bem um “interesse” no sentido menor e egoísta do termo e, de modo nenhum, uma moda efémera. Na verdade é uma filosofia de vida, algo que faz parte das vivências mais profundas de muitos de nós e nos conduz, no mundo conturbado em que vivemos, rumo à nossa finalidade essencial como seres humanos, aqui e agora.

Através das redes sociais o Hélder foi dando conta dos registos escritos desse percurso a um restrito grupo de amigos que o incentivaram nesse seu propósito de nos legar um diário de viagem. As circunstâncias felizes haveriam de juntar a vontade da “Chiado Editora” para a produção desta obra: “Athos - Viagem dentro de um Peregrino” que consubstancia o conjunto de vivências e de reflexões pessoais do Hélder durante a sua estadia no Monte Athos.

Quando o Hélder me contatou dando conta da oportunidade surgida de publicar esse relato em livro e convidando-me para o apresentar senti-me, sinceramente, um privilegiado e desejo, desde já, agradecer-lhe o convite feito que me honra muito e no qual procurei colocar todo o meu empenho, desde a primeira hora.

Nas apresentações de obras literárias quem apresenta incorre, algumas vezes, naquilo que para mim é um lapso: citar e apresentar partes do livro. Todos concordarão que bom é mesmo ler o livro. No entanto desejaria referir algo que, para mim, é essencial. Fiquem descansados, não vou contar partes do livro…

Ao ler esta obra cada um de nós poderá rever-se nela. O seu percurso exterior é, no fundo, uma caminhada espiritual, interior, mas com reflexos profundos e determinantes na nossa vida comum de todos os dias. Não é uma abstração, não é simbólica. É a nossa realidade. Por vezes dura, outras vezes suave, mas, sempre a realidade. Neste livro vemo-nos confrontados com os anjos e os demónios da nossa existência. Somos, algumas vezes, conduzidos ao confronto puro e duro com as maiores dificuldades ou elevados à beatitude da contemplação de um Mar Egeu límpido e cristalino.

Nele revemos os companheiros de viagem. Nele reconhecemos os falsos amigos que nos cercam. Mas também os verdadeiros, os que sempre nos apoiam. Nele revisitamos os caminhos que percorremos, para descobrirmos que chegámos a um beco sem saída. Mas a grande lição a tirar daqui é a de que vale a pena voltar para trás para encontrar um novo percurso. O que se perde em tempo, ganha-se em experiência. Nunca nada se perde em absoluto. As encruzilhadas, as opções que é necessário tomar. Algumas delas erradas. Outras acertadas. Todas confluindo e conspirando para a nossa aprendizagem, para a nossa evolução enquanto seres humanos empenhados, comprometidos, com um percurso espiritual sempre norteado pelos mais elevados valores humanos.

Uma parte do livro tocou-me especialmente. Aquela onde o Hélder refere o seu percurso com os pés inchados, cheios de bolhas. Sim, Kakalis tem razão. Uma peregrinação não é apenas uma caminhada exterior num ambiente mais ou menos propício. Não é apenas uma viagem geográfica. É, acima de tudo, um percurso interior que acaba por ter ressonâncias e conotações com a realidade exterior. Daí que a experiência individual numa peregrinação seja irrepetível. Cada um vive-a a seu modo de acordo com o seu universo particular. Contudo aquilo que cada um de nós aprende nessa viagem exterior e interior é o mesmo.  A mesma verdade eterna e incontingente. É essa verdade que nos une a todos: homens e mulheres, ricos e pobres, cristãos, budistas, muçulmanos…

Que cada um de nós possa alcançar o topo do seu Monte Athos e descobrir que outros montes mais altos se perfilam no horizonte.

Muito Obrigado

António Tavares

 

 



[1] Prefácio ao livro “Athos - viagem dentro de um peregrino” de Hélder Palhas, Chiado Editora, Lisboa 2012.

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